Já se vão 30 anos sem Elis Regina, e ela permanece sendo um assunto apaixonante, delicado, perturbador para o Brasil. Sua morte precoce, em janeiro de 1982, foi um divisor de águas que traumatizou todo um país, de impacto até hoje apenas parcialmente avaliado.
Em termos mais amplos, o trauma antecipou em alguns anos a derrocada oficial da ditadura militar, num arco esquisito que se fecharia em 1989, com as primeiras eleições presidenciais diretas desde 1960 e a morte de Nara Leão, outra cantora-símbolo do Brasil que deixava vagarosamente de existir. Para a chamada música popular brasileira, a morte de Elis significaria a extinção de um paradigma heroico que não se renovaria mais, mas de que muitos sentem até hoje saudades algo mórbidas.

A cantora Elis Regina durante o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de 1967
Não é que de lá para cá não tenham despontado cantoras brilhantes, dentro do paradigma triplo Elis Regina/ Gal Costa/ Maria Bethânia – é possível citar Marisa Monte, Cássia Eller, Maria Rita, Ana Carolina ou Vanessa da Mata, apenas para ficar em algumas das mais evidentes. O que não se renovou após Elis foi a disposição de artistas (de quaisquer sexos) para ocupar o papel épico e um tanto masoquista que a intérprete gaúcha, voluntária e involuntariamente, desempenhou nos poucos e intensos anos em que esteve na boca da cena musical local.
Frequentemente tomamos essa ausência como saudade, nostalgia e vazio, mas não deixa de ser positivo que esteja vago há tanto tempo o trono de Elis ou, antes dela, Carmen Miranda – aquele lugar do palco no qual alguém sofre, se dilacera e sangra diante de nós para purgar nossas próprias e ocultas dores.
Carne dilacerada em forma de música é o legado maior de Elis, como comprovam gravações atemporais fulminantes como “20 Anos Blue” (1972), “Na Batucada da Vida” (1974), “Como Nossos Pais” (1976), “Romaria” (1977), “O Bêbado e a Equilibrista” (1979). O vazio deixado por ela dá conta do talento da artista, mas também do fato de que não devia ser fácil carregar tanta dor na voz.
A nostalgia dita de esquerda provocada pelo fantasma de Elis engloba o mito da artista participante, politizada, que sangrava por si e por “tanta gente que partiu num rabo de foguete”. Foi outro dos caminhos doloridos para ela, que veio de origem despolitizada, cantou para o Exército, foi cobrada por isso e penou para conquistar prestígio junto a patrulhas MPB que não admitiam nada além do pensamento único (ainda que pretensamente progressista).
Entre a Elis de “Viva a Brotolândia” (1961) e a reinvenção como porta-voz da anistia, financiadora da aurora do PT (como conta André Midani, seu diretor nas gravadoras Philips e Warner), se encontrava a morte.
Saudades à direita também emanam, talvez daqueles mesmos que há décadas celebram o fato de os artistas contemporâneos não serem “panfletários”, não misturarem música e política – mais patrulhas, embora no vetor oposto. Sentem saudade de Elis à mesma medida que deploram, nos artistas de hoje, atributos que Elis suou frio para possuir. Paradoxalmente, não é difícil imaginar saudades mortais à direita e à esquerda brotando dos mesmos peitos, digam-se eles “progressistas” ou “conservadores”.
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