Terça, 3 de agosto de 2010, 08h12
Vendem-se casas-grandes e senzalas
Rui Daher
De São Paulo
Mais do que um território de formidáveis extensão e diversidade, fartamente receptivo à atividade agropecuária, herdamos de Portugal um processo de colonização relativamente afável.
Diz Gilberto Freyre, em "Casa-Grande e Senzala" (Livraria José Olympio Editora, 22ª edição, 1983, RJ): "O colonizador português no Brasil foi o primeiro dentre os modernos a deslocar a base da colonização tropical da pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal (...) para a de criação local de riqueza".
É uma referência tanto à destruição espanhola nos México e Peru, por exemplo, quanto às grandes plantações de açúcar, sobretudo, em Pernambuco e no Recôncavo da Bahia, que embora tenham se desenvolvido de forma patriarcal e aristocrática não o foram "em grupos a esmo e instáveis mas em casas-grandes de taipa (...) não em palhoças de aventureiros".
É certo que Freyre, e daí a essencialidade de sua obra, mostra um olhar benevolente, adocicado, da escravidão no período colonial. Um hábito que perdura no imaginário das elites nacionais depois de mais de cinco séculos. Não à toa, supôs-se aqui não haver preconceito racial e, antes de se tornarem áreas conflagradas pelo narcotráfico, a pobreza dos morros cariocas se prestou a poéticas homenagens.
Essas vocações seculares podem ainda ser compradas em estado bruto. Tanto aqui, onde predomina a produção da casa-grande, como na África, onde a senzala precisa, antes de exportar, produzir para matar sua fome.
Motivo para se discutir seriamente a compra de terras agricultáveis por estrangeiros em países pobres das América Latina, Ásia e África. O Brasil, pelas características acima, é o pitéu cobiçado desse banquete, tanto que viu nos três últimos anos crescer vertiginosamente o preço de suas terras.
Diante da recente escalada mundial dos preços dos alimentos e da futura escassez de fatores essenciais para a produção agropecuária, vários países estão tratando de assegurar alimentos e bioenergia para seus consumos plantando e colhendo na casa dos outros.
Nem tanto governos, mas grandes investidores, corporações privadas, fundos de pensão e hedge, já perceberam que entre os principais ativos as terras serão os de maior valorização. Estima-se que no período de apenas um ano de 15 a 20 milhões de hectares foram adquiridos por investidores com esse perfil. E aí já não estamos mais falando de segurança alimentar, mas de reserva de valor.
Na África, crescem arrendamentos por prazos que vão de 50 a 99 anos sem estarem associados a projetos de desenvolvimento local. No Brasil, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário, há 4,3 milhões de hectares de propriedade estrangeira, sem contar que é considerada nacional qualquer pessoa física com domicílio no país.
Não há, assim, qualquer sinal de nacionalismo xenófobo quando o governo brasileiro discute estabelecer restrições à compra de terras por estrangeiros. É uma discussão que deveria se intensificar nas entidades patronais da agropecuária e nos movimentos sociais nela envolvidos.
A posse da terra, tão disputada e mendigada quando se trata de acolher assentados e servir de patrimônio e trabalho para famílias rurais, é entregue a mancheias para capitais estrangeiros, especulativos ou não.
Estamos falando de dezenas, às vezes centenas, de milhares de hectares numa única transação, extensões impossíveis de serem creditadas a quem cultiva em pequenas propriedades. Mas são estas que recebem a condenação do patronato quando vendem um lote recebido do governo.
Qual deles um caso de soberania nacional?
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